Banca da Nilza e Marcelo ao lado da estátua do Pequeno Jornaleiro, no Centro.
A banca raiz e os novos tempos
Dos caixotes de imigrantes italianos às tabacarias administradas por empresas terceirizadas, bancas passaram por série de transformações com o passar dos anos
Por Gabriel Vieira
A história das bancas de jornal na cidade do Rio passa por inúmeras pessoas que dedicaram boa parte de suas vidas à elas. Uma delas é Francesco Cittadino, de 87 anos. O italiano veio sozinho de seu país aos 16, em dezembro de 1952. No ano seguinte, começou a trabalhar vendendo jornal no Bonde de Santa Teresa, e depois, passou por duas bancas no Centro, até que em 1973 chegou à Cinelândia, que é a área onde atua até hoje. Ao longo dos anos trabalhando com bancas em uma região tão importante para a cidade, teve contato com inúmeras pessoas importantes para a história do nosso país, como os ex-governadores Carlos Lacerda e Magalhães Pinto e o ex-presidente da República, Juscelino Kubitscheck. Segundo ele, nunca teve inimizade com ninguém e inclusive, trocava jornais com algumas dessas figuras, como a então diretora do Jornal do Brasil, Condessa Pereira Carneiro.
Envolvido há tanto tempo, Francesco está desiludido quanto às bancas, pois, segundo ele, os jovens atualmente não gostam de jornal ou de ir aos locais, apenas ficar na internet. Por mais que a banca não traga o mesmo retorno que um dia trouxe, ele destacou que ainda faz questão de ir trabalhar todos os dias mesmo com a idade avançada. "Hoje eu estou com 87 e ainda não paro, não vou parar. Eu quero trabalhar. Nem trabalhar, mas me movimentar, não gosto de ficar em casa…Graças a Deus eu me sinto bem para ficar na rua. Nem para trabalhar, ganhar dinheiro, mas por ficar na rua. E isso aqui é meu então não vou largar de mão beijada. O que eu tenho hoje devo à banquinha de jornal. Hoje não dá mais, mas já me deu."
Atualmente são duas bancas na família. Uma na Rua Alcindo Guanabara, que é onde ele fica, e a outra na Praça Floriano Peixoto, logo na saída do metrô da Cinelândia, que é comandada por seu filho, Flávio, que desde pequeno ajuda o pai nas bancas.
A tradição familiar sempre esteve presente no ramo. Antes de chegarmos no momento atual que virou comum alugar o espaço para um inquilino, a prática habitual era a passagem da licença da banca de forma hereditária, como no caso dos Cittadino, de pai para filho. Atualmente, a prefeitura do Rio não vende mais as licenças. Há aproximadamente 2.100 bancas licenciadas na cidade e o número não passará disso.
Para manter esse número, as bancas precisaram se reinventar ao longo do tempo. O avanço da tecnologia e da internet facilitaram o acesso à informação, que era um dos principais motivos que atraíam a população à elas. Atualmente, revistas e jornais deram lugar a bebidas e itens de tabacaria, que viraram os principais produtos vendidos para a maioria dos jornaleiros.
Por conta destas mudanças, é cada vez mais difícil ter uma banca ‘das antigas’ no Rio. Cada vez mais os estabelecimentos estão focados nestes produtos. Um exemplo disso é o surgimento de empresas como a Gio Conveniência, especializada no comércio e delivery de tabacaria e bebidas, que passou a alugar as bancas. Atualmente são seis pontos: três na Zona Oeste e três na Zona Sul. Um deles é a tradicional Banca Piauí, localizada na Avenida Ataulfo de Paiva, uma das principais ruas do Leblon. A banca era comandada pela revista de mesmo nome, mas hoje em dia é alugada pela ‘Gio’. Por ainda ser associada e ter o mesmo nome da revista, é a única das seis da rede que ainda tem foco no material impresso.
Esse ‘novo conceito’ das bancas está muito longe do propósito inicial. Elas surgiram em 1860 para organizar a venda de jornais em um local físico, já que até então era feita por jornaleiros que iam pelas ruas levando-os de mão em mão. A primeira de todas foi montada pelo imigrante italiano Carmine LaBanca, de quem se originou o nome que elas levam até hoje. Ele utilizou caixotes com uma madeira em cima onde os jornais eram organizados. Com o tempo, as estruturas evoluíram para bancas de madeira, e na década de 1950, chegaram ao modelo atual, retangulares, feitas de metal e prateadas.
Outra história que se confunde com a das bancas é a de Nilza Fernandes. Atual vice-presidente do Sindicato dos Jornaleiros do Estado do Rio de Janeiro (Sinjor), ela está envolvida com as bancas desde os 17 anos. Hoje, aos 61, segue lutando pela manutenção destes espaços fundamentais para o acesso à cultura e conhecimento no Brasil.
Nilza chegou a esse mundo quando conheceu o atual marido, sobrinho de Luigi Gullo, que foi o fundador do Sinjor, o primeiro sindicato patronal do país relacionado à área. Ela considera a sua uma ‘banca raiz’. 70% dos produtos vendidos são de papel e apesar dos números de venda terem caído nos últimos anos, ainda tem um público fiel.
Isso foi importante em outro período que afetou muito os estabelecimentos, a pandemia de Covid-19. Nilza destacou a importância da prefeitura manter as bancas abertas como serviço essencial.“A prefeitura viu a importância da pessoa comprar uma Coquetel (revista de passatempos como palavra cruzada e caça-palavras) da pessoa se distrair em casa, descer e comprar um cigarro, comprar uma Coca. As bancas tiveram uma importância muito grande para os bairros na pandemia.”
Ainda assim, os números de vendas diminuíram por conta do baixo fluxo de pessoas nas ruas. Nilza falou sobre como reinventou e modernizou seu estabelecimento. "Eu sou daquele tipo, que penso que poço que pinga não seca. Não foi fácil, mas eu ia para lá, eu abria, se algum cliente, queria uma revista a gente usava a moto para entregar, a gente tem WhatsApp nós temos Facebook, temos Instagram e tudo aquilo que sai segunda e quarta nós postamos então nós interagimos com os nossos clientes desde a época que começou a surgir a a mídia digital, nós nos modernizamos nesse sentido.”
Quem trabalha com ela na banca é Marcelo Santana. Ele está envolvido com a venda de jornais desde cedo, pois foi um Pequeno Jornaleiro. A Casa do Pequeno Jornaleiro foi um projeto criado em 1938 pela então Primeira Dama da República, Darcy Vargas com o objetivo de oferecer abrigo, educação e assistência médica às crianças que vendiam jornais no Centro da Cidade. Ele relatou um pouco da experiência: "Eu comecei com 13, 14 anos e não tinha muita expectativa de vida em relação ao futuro, né? E a minha mãe me colocou nessa escola e logo eu aprendi a ser um ser humano melhor. Essa escola era como se fosse um colégio militar na verdade… E lá eu fiquei três anos. Vinha para a banca, pegava os produtos, revista e jornal, e levava nos prédios do Centro da Cidade e fui evoluindo, comecei a ganhar dinheiro, pra uma criança daquela idade que não sabia o que era dinheiro, passei a gostar da profissão, então quando dei baixa na escola, vim direto para cá.”
Com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, tornou-se proibida o trabalho das crianças e a Casa do Pequeno Jornaleiro precisou se adequar às novas normas. A solução encontrada foi oferecer cursos profissionalizantes para os membros. Hoje em dia, 10% da arrecadação das bancas vai para a fundação que não consegue desempenhar um papel tão grande como já fez, mas ainda auxilia jovens a se desenvolverem.
Por serem importantes fontes de cultura e informação para o povo, as bancas foram alvos das autoridades na época da ditadura militar. Eles faziam vistorias nas bancas para se certificarem que os jornaleiros não estavam vendendo os jornais de oposição que foram proibidos de circular durante o regime. Além disso, algumas serviam como ponto de encontro de jovens opositores. Em uma dessas, foi detido o jornaleiro Vicente Francisco Scofano. O fato ocorreu logo no início da ditadura, em 1964. Ele explicou que foi um grande mal entendido:
"Naquela época a polícia ia de banca em banca visitando e eu trabalhava aqui na Tijuca. Então eu tinha separado o jornal Tribuna de imprensa (um dos perseguidos pelo regime) para um coronel que comprava, né? Aí chegou o pessoal do DOPS ( Departamento de Ordem Política e Social) e fizeram uma vistoria lá e eu disse que não tinha nada, aí viram aquele jornal lá guardado e me levaram. Então cheguei lá e o Coronel logo em seguida soube, veio lá e me tirou. Foi questão de uma hora, uma hora e pouco. Não cheguei a ser preso mesmo.”
Em fevereiro do ano seguinte, Scofano se tornou presidente do Sinjor, cargo que ocupou até 2017. Ele reforçou os desafios atravessados na época do regime não só para os jornaleiros, mas também para os veículos de jornalismo, visto que havia uma colaboração conjunta das duas classes, principalmente com os editores de jornais e revistas. “Nós (jornaleiros) passamos por privações que nós não tínhamos os produtos até para vender e atender o público, porque era tudo censurado, então o pessoal aqui eu não tinha nem vontade de comprar o jornal. Agora as empresas jornalísticas, tem que pagar os jornalistas, redatores e os seus compromissos industriais de custo que não são fáceis. Eles passaram apuros mesmo.”
Para Nilza, as bancas vão muito além de serem apenas um local que vende jornais e revistas. A preservação das bancas, significa não só a conservação da cultura no país, mas representa histórias e vidas de várias pessoas. "A banca de jornal fez vários amigos, inclusive fez até casamento, pessoas que se encontraram lá, começaram a conversar de repente começaram a namorar e se casaram. É um local onde a gente dá informação de cinco em cinco minutos para as pessoas, para os turistas, então é um local que tem vida, onde não tem classe social você lida com todas as pessoas de uma forma igualitária, entendeu? Todo mundo quando entra lá dentro é igual.”
Por conta dessa importância cultural e histórica delas para a sociedade, a Câmara Municipal do Rio aprovou em 2022 um projeto de lei que declarou todas as bancas e jornaleiros da cidade como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Povo Carioca.