Museu Nacional em obra. (Fonte: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
São Cristóvão: Consequências das reformas urbanas planejadas para o bairro
Por Mauro Machado
De autoria do Poder Executivo, e sancionada em dezembro de 2023, a Lei Complementar Nº 267/2023 mira em expandir as mudanças urbanas do Porto Maravilha nas regiões central e portuária do Rio de Janeiro para o bairro de São Cristóvão. A iniciativa tem gerado questionamentos por parte de políticos, população e militantes sobre as consequências para o bairro, junto dos moradores e do patrimônio que lá se encontram.
Lançado em 2009 e colocado em prática na última década, o Porto Maravilha foi foco de várias das principais perspectivas urbanísticas na cidade. O projeto envolveu a demolição do Elevado da Perimetral e o Túnel Rio450, tendo megaeventos como a Copa do Mundo FIFA 2014 e as Olímpiadas de 2016 como perspectiva.
A ampliação do projeto para São Cristóvão foi aprovada pela Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro com ampla vantagem, por 37 votos favoráveis e 8 contra, dado o tamanho da base da gestão de Eduardo Paes. Pelas novas regras, será permitida a construção de imóveis residenciais em qualquer área privada de São Cristóvão, com os mesmos estímulos fiscais e urbanísticos já colocados em prática no Porto Maravilha. A ideia é trazer novos moradores para a área, renová-la nesse sentido a partir de um maior adensamento populacional. O planejamento também inclui a construção de prédios de até 36 andares,equivalente a 108 metros de altura.
Apesar disso, e da propaganda feita pela prefeitura e por construtoras, o projeto não é unanimidade. A articulação da oposição, por vereadores ou representantes de associação de moradores, embora tenha acontecido, não se mostrou suficiente para que o projeto não seguisse em frente.
Questionamentos feitos
Segundo a vereadora Luciana Boiteux (PSOL), as reformas pensadas para São Cristóvão refletem uma perspectiva de cidade pensada, antes de mais nada, para o mercado imobiliário. O risco de gentrificação e danos ao patrimônio histórico do local são alguns dos principais problemas apontados por ela envolvendo essas mudanças. Ela foi uma das principais vozes de oposição ao projeto enquanto parlamentar.
A vereadora questiona também o legado do Porto Maravilha, que vê com olhos críticos. “Essa experiência, mesmo do ponto de vista do mercado imobiliário, não deu certo. Houve muita promessa, mas vemos espaços vazios e esvaziamento da região, que continua isolada na prática.”, avalia. Não houve, para Boiteux, mudanças que tornassem a região atrativa para novos moradores. Nem moradias populares foram construídas, nem se tornou residência da camada da população com mais poder aquisitivo, que preferiram se manter em outras regiões da cidade. Além do disco de que grande parte dos apartamentos passem a ser Airbnb, de aluguel temporário, que operam em uma lógica descolada da cidade e com potencial gentrificador.
Luciana Boiteux vê um potencial grande no bairro para crescimento que conciliasse as características tradicionais de lá com desenvolvimento mais regrado. “A partir do momento em que o ponto de vista é meramente mercadológico, a própria preservação de prédios históricos fica ameaçada.”. Na visão da vereadora, bem como de sua equipe, a visão de Eduardo Paes flexibilizará normas protetivas para patrimônio e população para beneficiar o mercado imobiliário.
A associação de moradores de São Cristóvão esteve presente durante a votação do projeto, em dura tentativa de diálogo. “Não há interesse de escutar ou construir coletivamente”, relata Boiteux.
Ativista de patrimônio histórico, vinculada à associação de moradores de São Cristóvão e moradora do bairro, Luciene passou a atuar na luta por melhorias para a vizinhança a partir de 2015. Ela questiona o sentido de “revitalizar” partes da cidade como se não houvesse dinâmicas urbanas nelas, e acusa os projetos da prefeitura de muito marketing. Foi através da conversa estabelecida entre a associação e o vereador Edson Dantas (PT), que emendas foram negociadas para proteção do patrimônio cultural de São Cristóvão, embora parte da população do bairro não esteja plenamente informada sobre as mudanças planejadas.
“A maior parte das áreas visadas pelos empreendimentos não são terreno baldio, lá estão famílias que residem há três ou quatro gerações. Essas pessoas sofrem risco de desapropriação.”, afirma a ativista.
São Cristóvão entre passado glorioso e futuro incerto
O apelido de bairro imperial não é à toa, e vem do período de chegada da família real ao Brasil, no século XIX. São Cristóvão era, naquele momento, uma parte bastante rural e afastada do Rio de Janeiro. A partir do momento em que o Palácio da Quinta da Boa Vista se torna residência da família imperial, todo seu entorno é ocupado por outros palacetes e, assim, surge a dinâmica de uma elite local.
“A República, quando surge, destrói São Cristóvão. E a destruição não é apenas no sentido de fazer o bairro somente tipicamente comercial, industrial ou operário. É também no de apagar a memória da monarquia.”, conta André Chevitarese, professor do Instituto de História da UFRJ.
De acordo com Chevitarese, não houve nenhum projeto que desse conta de resgatar essa memória imperial, fosse por viés arquitetônico ou arqueológico. O que é percebido, para o historiador, é uma pressão em áreas urbanas pelas construtoras para aceleração de obras. O professor, que também possui formação em arqueologia, conta que já esteve envolvido em projetos nos quais não teve o tempo e o cuidado ideais por conta do ritmo que é colocado ali. “Arqueologia urbana não permite muita paciência. Ao mesmo tempo que se aceita fazer o trabalho arqueológico, as máquinas estão sempre pressionando.”, relata.
Em um bairro que não é prestigiado pela prefeitura do Rio de Janeiro e a República fez questão de esquecer, por conveniência, o problema se torna maior na medida em que a maior parte das casas da área não é tombada. André Chevitarese acredita que é o cenário perfeito para que a especulação imobiliária se estabeleça de forma desenfreada.
Projetos que incluem remoções e gentrificação, no Rio de Janeiro, como lembra o professor, também não são cenários novos. As reformas urbanas capitaneadas por Pereira Passos no início do século XX, por exemplo, refletem essa mentalidade. Não só São Cristóvão é alvo de mudanças que trazem esse tipo de consequência, mas as perspectivas de Eduardo Paes para a construção de conjuntos habitacionais na Leopoldina também pode fazer com que construtoras tragam prejuízo ao patrimônio do final do século XIX e início do XX que está na Praça da Bandeira e redondezas.
André Chevitarese menciona o bairro de Santo Cristo como outro pedaço esquecido do Rio de Janeiro que tem sofrido com mudanças deste tipo. A reação da prefeitura para o esvaziamento das regiões central e portuária da capital fluminense acaba sendo, sem outras alternativas, a gentrificação.
“Com exceção de bens tombados e de áreas de preservação, qual é o tipo de memória que queremos preservar? Aquelas das pequenas casas, dos pequenos bares e botequins, de uma memória operária e popular ficam arrasadas nesses processos de gentrificação.”, questiona Chevitarese. O conceito de memória e daquilo que deve ser preservado, no Brasil, dá margem para que, em São Cristóvão ou qualquer outro lugar, a memória das classes populares fique de fora de projetos de preservação.