"Daqui, eu não saio, daqui ninguém me tira"
O drama de Maria do Socorro, que se recusa a deixar a casa, é recorrente em moradias em áreas de risco na cidade
Por Klara Argento
Toda vez que alguém da Defesa Civil bate à porta, a resposta da doméstica Maria do Socorro é sempre a mesma: "Daqui, eu não saio. Não tenho para onde ir". Embora a casa de dois cômodos, ocupada por cinco pessoas, fica na beira de uma encosta, a família de Maria do Socorro prefere conviver com o medo, a cada temporal, do que passar dissabores em abrigos provisórios e casas de vizinhos. Pelo menos em três oportunidades, eles tiveram de sair às pressas. Mas a pequena casa resistiu.
Seguindo a conversa já chorando, a última vez que saiu, morou com uma amiga em um quarto. Moravam Dona Maria, sua filha, seu filho, sua neta e seu neto. Cinco pessoas no local pequeno. Não deu certo a convivência com a amiga e mais uma vez ela voltou para a sua casa. Hoje em dia ela continua no local considerado de risco e não pretende sair caso a Defesa Civil venha pedir para ela ir para um abrigo.
Desde a última chuva de janeiro, a Geo-Rio continua realizando mais de 15 obras devido ao forte temporal que acometeu a cidade do Rio de Janeiro. Em conjunto com o Alerta Rio, o órgão opera em sistema de som de sirene nas comunidades para orientar os moradores a sair de suas residências quando há temporais, o que ajuda a Geo-Rio a identificar as casas e fazer a fiscalização necessária.
A Prefeitura do Rio tem o atributo da Auto-Executoriedade administrativa, que significa o poder da Administração Pública executar as próprias decisões sem haver necessidade de tutela judicial. Assim, a Administração Pública por si só só cumpre suas funções com os seus próprios meios, ainda quando qual execução interfira na esfera privada do administrativo.
Quando há um grupo de pessoas em situação de risco, a Prefeitura tem a obrigação de tirar e remover. O que acontece às vezes é que as famílias vão à Defensoria Pública e não querem ficar ganhando auxílio habitacional. Para a população, é um valor baixo e não compensa sair de suas casas mesmo estando em situação de risco. Neste caso, a Defensoria Pública e às vezes o Ministério Público, vai à Justiça e obriga a Prefeitura a não remover ou só remover em caso de colocar aquela pessoa numa nova moradia.
A cidade do Rio de Janeiro tem um déficit habitacional que agrava esta situação. Não tem moradia para todo mundo, com isso, não consegue alocar aquela população rapidamente sem ser a forma de pagamento. A Prefeitura dá auxílio, mas volta o imbróglio com a Justiça. A Prefeitura vai ao Judiciário para pedir que a ordem de não remover seja revogada, considerando ali o risco que aquele grupo está envolvido.
O Auxílio Habitacional Temporário é um benefício que a Prefeitura oferece à população para a locação de imóveis por um tempo determinado. O órgão oferece uma espécie de R$:400,00 para as vítimas de tragédia decorrente de chuva ou de intervenção urbana. A situação de risco das comunidades não estaria prevista neste auxílio, mas acontece que, às vezes, o prefeito diretamente libera para aquela situação trágica o pagamento mesmo não previsto em decreto.
O presidente da Federação das Favelas do Rio de Janeiro, David Gomes, mais conhecido como Derê, explica que ninguém mora em área de risco porque quer, porque gosta. As pessoas moram em áreas de risco porque não têm para onde ir. O Rio de Janeiro não tem uma política robusta que dê conta do déficit habitacional da cidade. Para as pessoas saírem da área de risco, primeiro precisa de investimento público e infraestrutura nessas regiões.
Além disso, o historiador David Gomes, participou de uma audiência pública na Câmara Municipal, que inclusive se pronunciou afirmando que não existe área de risco no Brasil, mas sim área de pobre e de rico. Porque quando os pretos, os pobres, moravam nessas áreas, era tido como área de risco, porque não tinha investimento público.
Depois que os pretos e pobres saíram, essas áreas passaram a ser ocupadas por pessoas ricas, como por exemplo a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Centro da Cidade e algumas regiões da Zona Sul. Mesmo com a defesa civil indo, faltam programas habitacionais para essas pessoas, e mesmo se tivesse, não sairia.
A Defesa Civil bate muito na tecla de que as pessoas tendo um lugar, elas não saem de lá, eu não acredito que essa fala esteja correta. As pessoas não saem porque não tem outro lugar para ir. Óbvio que se as pessoas tivessem moradia digna, elas se mudariam com certeza. Ninguém fica em área de risco, ainda mais com a determinação do poder público dizendo que a pessoa corre risco de vida. Mas é óbvio que ninguém vai largar suas casas para morar na rua ou debaixo da ponte.
Prefeitura em conjunto com a Geo-Rio
A função da Geo-Rio não é apenas fazer fiscalizações em áreas de risco. Em Guaratiba, na Estrada da Pedra, alagava muito quando chovia, a Geo-Rio foi até o local e fez uma grande obra de drenagem. Desde então, neste local, não alaga mais e a população tem suas casas sem passar por um transtorno quando chove. As obras de contenção são realizadas pela Geo-Rio à população carioca. Desde quando foi criada, em 1966, a instituição já realizou mais de 5 mil obras ao longo desses anos. Além das fiscalizações em casas de áreas de risco.
O presidente da fundação, Anderson de Andrade Marins, ressalta que, em 2019, uma das últimas chuvas mais intensas da cidade, a Geo-Rio teve 31 decretos de calamidades publicados, e em conjunto com o Governo Federal tiveram um investimento de verba de 90 milhões para a cidade.
Além disso, as verbas e a estrutura para essas áreas vêm sendo maiores a cada ano que passa, devido às mudanças climáticas que o planeta tem enfrentado. A gestão de risco da Geo-Rio passa por várias etapas: a primeira delas é quando a Defesa Civil entra em contato com a instituição. A equipe vai até o local para fazer o diagnóstico da área, o mapa geográfico e geotécnico que consinde com o mapa da suscetibilidade das áreas de risco.
O mapa não tem problema ser antigo, porque a morfologia da cidade não muda mais, então isso não interfere no trabalho das pessoas quando forem executar a obra. Entre os mapeamentos existentes, os dois principais são Serra da Misericórdia e o Maciço da Tijuca. Esses maciços são áreas ocupadas por favelas e tem esse mapeamento feito pela Prefeitura do Rio, através da Geo-Rio.
Geografia da Cidade
A geóloga Renata Borelli, especialista em planejamento urbano no estado Rio de Janeiro pela UERJ, explica as características existentes na cidade do Rio para que haja tantas áreas de risco. Segundo os estudos feitos pela Renata ao longo dos anos, parte do município do Rio de Janeiro está localizado sobre restingas, manguezais, e terrenos pantanosos, cercado por lagoas e pelos rios que abastecem, e em faixas espremidas entre o mar e as áreas de maciços com encostas íngremes.
Há ainda bairros que receberam grandes aterros, ocupando áreas da cidade que pertenciam, de certa forma, ao mar, rios, e às lagoas. Há décadas, as encostas, as beiras dos rios e de lagoas sofrem com desmatamento e ocupação desordenada, gerando alta concentração de pessoas e de moradias precárias nessas áreas, o que aumenta ainda mais as chances de algum tipo de risco para elas e para o seu entorno, principalmente as chuvas torrenciais da cidade que acontece no verão.
Por um outro lado, as construções clandestinas existentes em áreas de riscos tem um fator determinante para estar presente na cidade do Rio de Janeiro: isso acontece devido ao alto custo de moradia que apresenta as áreas com maiores oportunidades de emprego. Por isso, o alto custo de moradia empurra os trabalhadores para bairros distantes ou para bairros do município da Região Metropolitana da cidade. O tempo que esses trabalhadores levam para ir e vir, ultrapassam, muitas vezes, mais de quatros horas por dia.
Com essa evidência, surge mais uma questão: a precarização do transporte público da cidade, que afeta, principalmente, aqueles que precisam se deslocar no seu dia a dia entre o trabalho e a sua casa. A piora acontece devido ao alto gasto de passagens, o que automaticamente faz os trabalhadores procurarem uma moradia mais próximas ao local de onde trabalha, e assim, explica a ocupação das áreas de risco, em alto dos morros, atrás de encosta ou de lugares que tem, como característica, as enchentes.
Segundo pesquisa de 2022, há mais de 400 mil pessoas vivendo em áreas de risco na cidade do Rio de Janeiro. É um dado perturbador, que deveria servir de guia para políticas públicas de habitação, desenvolvimento social e transporte.
Moradores em área de risco
A Daiana, de 37 anos, moradora do bairro Picape, na Pavuna, mora com seus 4 dos 6 filhos em uma casa que passou por alagamento nas chuvas de janeiro deste ano. Por morar ao lado de um valão, quando a chuva se intensificou, acabou transbordando e invadindo seu local de moradia. Desempregada, com contas para pagar, sobrevive de ajuda do Programa Bolsa Família e ajuda dos vizinhos, sempre muito unidos quando acontecem as enchentes.
Ao ser perguntada como foi essa última chuva, ela respondeu com olhos marejados que nenhum órgão do governo foi até o local prestar ajuda necessária. A Defesa Civil, que deveria prestar ajuda nestes momentos, não apareceu. A única ajuda que teve foi através do presidente da federação das favelas, o Derê, ajudando-a com uma cesta básica.
Questionada se tinha obra de conservação do local onde mora, ela respondeu que não. A obra que fizeram foi bem à frente de onde mora e que, quando a chuva torrencial acontece, eles ficam à deriva, sem ajuda. A casa dela sempre encheu, o que foi novidade nesta última chuva foi o transbordamento do valão, que fica ao lado da casa dela e que acabou invadindo a residência.
A moradora do bairro Picape diz que não sai de sua casa e nem vai sair caso a Defesa Civil venha pedir para ela evacuar a casa, devido a área de risco. Ela não vê certeza nos órgãos para sair do local e ir para um lugar seguro. Para ela, é mais conversa do que verdade. Uma vizinha próxima a ela teve a oportunidade e até hoje não viu a moradia ser realizada de forma concreta.
Daiana lembrou também das vezes que passou por dificuldade decorrente da chuva, e uma dessas vezes, a água chegou até o seu pescoço e o medo, na hora, foi ficar doente de alguma virose como leptospirose, muito comum para quem contato com água suja, como foi o caso dela. Depois da água escoada, foi até o postinho de saúde, explicou a situação e passou por uma consulta médica. Por sorte, estava tudo bem.
A vizinha de Daiana, Priscila, de 40 anos, divide o mesmo quintal. Mãe de duas meninas, moradora do bairro há anos, tem as mesmas ressalvas que sua amiga, mas pensa muito nos filhos. Por querer uma melhor qualidade de vida para os filhos e não poder proporcionar isso a eles, ela pensa muito como vive hoje. As tempestades, cada vez mais frequentes, trazem medo e insegurança. Na chuva deste ano, ela perdeu todos os móveis da casa.
A ajuda veio com os vizinhos, encarecidamente começaram a ajudar como podiam, e aos poucos, ela consegue reconstruir tudo o que perdeu. A pergunta questionadora emitida por ela é que ''Até quando vamos sofrer com isso? Perder tudo, reconstruir tudo. É uma novela que não tem fim''.
É assim, com esse sentimento de insuficiência que ela se sente perante a todas as enchentes que vive. Sem saber se vai sobreviver, ela só pede a Deus que a ajude a enfrentar os obstáculos de cada dia e que sobreviva para poder não desamparar os filhos, no qual se orgulha muito de tê-los.